Quioto tem um festival especial que decorre a 22 de Outubro, e ao qual assistem sobretudo japoneses. Trata-se de um dos vários “Jidai Matsuri”, ou seja, um festival com tema da história do Japão e que consiste numa parada que percorre as ruas de uma cidade, bem como demonstrações pontuais. Neste caso o “Kyoto Jidai Matsuri” é literalmente o desenrolar das épocas histórias desde a fundação da cidade (séc. VII), as suas personalidades e eventos como capital (desde o séc. XI), até ao final do estatuto de cidade-capital já no séc. XIX. Curiosamente este festival foi criado imediatamente depois de Quioto deixar de ser a capital, e se me permitem vou dar um pouco mais de explicação sobre isso.
Com a mudança da capital para Edo em 1868 (renomeada Tóquio), a cidade de Quioto ficou em apuros: a mudança dos cortesãos fez declinar a procura de serviços e produtos, e em menos de um ano os artesãos e fornecedores mudaram-se também para Tóquio. Assim, podemos ver este evento como uma parte traumatizante da história da cidade. As pessoas que insistiam na importância e nobreza de Quioto (e que até consideravam a ideia de se mudarem para Tóquio inconcebível) alegavam que o não-sei-quê de especial de Quioto era insuperável e devia ser honrado devidamente. Efectivamente, esta foi a última capital imperial com o peso de toda a cultura xinto (Tóquio é sobretudo capital de uma nação moderna na geopolítica mundial) e por isso começaram a organizar-se paradas e festivais sobre as centenas de anos de história da cidade, bem como a investir nos seus monumentos e até na criação de novo património. Pode dizer-se que o facto de ter sido preterida como capital acentuou a vontade de enfatizar a sua longa e rica história como cabeça do Japão.
O festival é então a sucessão de personagens (trajados à época), carros, cavaleiros, bailarinos, músicos, etc, nas ruas e avenidas de Quioto. A cidade não pára completamente de funcionar mas cortam-se algumas ruas, a enchente perturba a circulação normal nos passeios, e algumas saídas de estação de metro são fechadas. Asseguro-vos que é espantoso estar nas ruas durante este festival e que vale a pena lerem dois ou três livros de história de Quioto antes, para desfrutarem melhor do que estão a ver. Outros preparativos incluem conhecerem o percurso da parada (para além de conseguirem ver na net há folhetos com isso na cidade), e levarem chapéu e um pequeno banco ou pelo menos um pano para se sentarem sobre ele.
Para terem um bom ponto de começo devem procurar um lugar à beira do passeio, mesmo em frente a uma das avenidas largas onde a parada passa, se puderem à sombra de um edifício ou árvore, e isto por volta das 10 da manhã. O desfile começa ao meio dia mas não vão conseguir ver nada se não se posicionarem cedo. Alguns turistas ocidentais, sobretudo americanos, apareciam para ver só ao meio dia, empurravam gentilmente e iam pedindo licença. Não os censuro por estarem a tentar “penetrar as fileiras” da audiência, mas de facto este comportamento é muito rude para os japoneses, que eu ouvi comentarem entre si como era incompreensível que alguém que chegava atrasado se sentisse no direito de ver o mesmo que os outros.
Depois de passarem cerca de duas horas à espera (levem livros, fruta, água e entretenimento!) e mais duas a ver a parada (esta parte passa muito rápido porque é espantoso) é possível que já não saibam em que posição estar. Então levantem-se e aventurem-se nas ruas transversais e finas, ou caminhem ao lado dos canais. Deste modo podem passar rapidamente para outra das avenidas onde passa a parada ou então vê-la passar sobre as pontes – o que também é memorável. Neste dia muitas pessoas que estão a trabalhar nos seus escritórios ou instituições fazem um intervalo de almoço um pouco maior, e vão sentar-se à beira dos canais e comer o bento ou a sandwiche, podendo por isso desfrutar da vista do festival a passar a ponte.
O ponto onde a parada termina é o santuário Heian.
Por isso é boa ideia irem para lá ver o encerramento: fazem poses e deixam-se fotografar, fazem pequenas performances a cavalo e de música, entre outras coisas. Para além disso deixem-se ficar por ali porque o santuário é um monumento impressionante e um espaço muito agradável. Se preferirem ver com mais sossego também podem não fazer isto e voltar noutro dia, porque quando não há eventos ou festivais está praticamente deserto.
O Heian Jingo também é um exemplo o “canto do cisne” de Quioto. Foi construído em 1895, para a comemoração dos 1100 anos da cidade! A cor vermelho-vivo é aquilo que o torna mais característico, sendo na verdade um revivalismo, pois o santuário foi feito com apontamentos de influência chinesa. Percebemos melhor porque foi feito desde modo se atentarmos ao facto de ser um monumento em nome das origens da cidade. A cultura japonesa do séc. VII estava numa fase de absorção de vários elementos chineses: em suma seriam o arroz, os caracteres, o chá e o budismo. Tanto a arquitectura japonesa dos princípios de Kyoto como o próprio desenho da cidade (a orientação das ruas, perpendicularidade e proporção) seriam grandes devedores a cultura da China.
No Heian Jingu podem ver as pessoas vestidas de kimono a tirar fotos, escrever os vossos desejos em papel e atar a um ramo de árvore, comprar amuletos, e tudo o mais. Eu tive a oportunidade de estar em Quioto tempo suficiente para ir lá mais que uma vez. Da segunda vez fui com amigas japonesas e já era Novembro, estava tudo muito sossegado e até começava a chover, o que lhe dava um ar nostálgico e muito diferente do dia festivo do Jidai Matsuri. Os santuários japoneses têm destas coisas, mudam muito com a atmosfera e a estação do ano, por isso é sempre diferente quando os visitamos.
Mesmo por trás do Heian Jingu existe um edifício que quase passa despercebido mas onde podem passar uma ou duas horas de diversão e criatividade. Trata-se do Kyoto Handicraft Center ( http://www.kyotohandicraftcenter.com/access/index.html ). Este enorme centro congrega cerca de uma dezena de workshops, desde pintar leques a fabricar utensílios, passando por cerâmica, chá e origami, um pouco de tudo portanto. No fim, aquilo que fizeram fica para vocês; é uma excelente recordação dos tempos passados no Japão!
A principal vantagem do KHC em relação a outros centros de trabalhos manuais espalhados pela cidade é que podem escolher na hora, sem precisar de reservar, e também o facto de toda a explicação e orientação ser em inglês (se a pessoa que está a tomar conta da banca que escolheram não falar inglês terá um folheto explicativo para vos dar). Como disse em cima, dia em que visitei o Heian Jingu estava a chover por isso foi muito bom podermos passar uma hora num sítio quentinho, bem iluminado, e a fazer coisas bonitas.
Escrito por: Inês Carvalho Matos