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O país dos Matsuris

Os japoneses são mais conhecidos pela sua faceta de trabalhadores compulsivos do que como um povo especialmente divertido. No entanto, é provável que o Japão seja o país que mais festivais (matsuri) celebra durante o ano. Diz-se até que em qualquer parte do país, seja qual for o dia, decerto haverá um festival. Há matsuri de âmbito nacional, mobilizando milhares de pessoas e outros que mobilizam pequenas comunidades; há os que duram dias e os que duram somente horas; há os que acompanham celebrações rurais e os que acompanham celebrações urbanas; há-os solenes e há-os divertidos.

A faceta séria e perfeccionista dos nipónicos, todavia, também se manifesta nos matsuri. Estes são amiúde trabalhosos e elaborados, fazendo prova de uma extrema exigência estética. Transpiram esforço e, muitas vezes, celebram o esforço. São uma exibição espectacular de cor, símbolos, trajes, antiquíssimos ritos. E são, sobretudo, uma forma de veneração, um encontro feliz do povo japonês com o divino. A palavra matsuri deriva do verbo matsuru, que significa precisamente venerar, adorar.

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Originalmente, os matsuri eram uma prática xintoísta, mas acabaram por incorporar ritos ligados ao calendário de origem budista e chinesa. Elementos budistas e xintoístas estão vulgarmente presentes em qualquer um deles.

Os matsuri ocupam um lugar de honra na vida dos japoneses e contribuem para a sua forte identidade espiritual. São ocasiões nas quais comungam com os seus deuses e espíritos ancestrais; nas quais reconhecem um passado comum que recua até tempos míticos; nas quais celebram a natureza e o renovar incessante das estações, que são excepcionalmente marcadas no país; e, providenciando uma pausa no trabalho e na vida regrada do dia-a-dia nas quais, são ocasiões nas quais as famílias e os vizinhos se divertem, reafirmando laços comuns. O facto de os japoneses conseguirem manter vivas tantas tradições deve-se, em grande parte, a estas celebrações.

Muitos matsuri relacionam-se com o cultivo do arroz, uma vez que este constitui uma verdadeira fundação da cultura japonesa. Os matsuri ligados ao cultivo do arroz celebram-se todo o ano e em todo o país. Variam muito na forma mas unem-se por uma causa comum: pede-se aos deuses que façam os cereais crescer em abundância e que evitem desastres naturais ou agradece-se uma colheita generosa.

Na Primavera, nos arredores de Nara, precedendo o cultivo do arroz, grupos de miko (donzelas dos santuários sagrados) inauguram o processo da plantação através de uma dança estilizada. A sua virgindade simboliza a fertilidade procurada pelos jovens rebentos de arroz. Por um acto de magia mimética, todos os estados de crescimento do arroz são representados ritualmente e elevados à sua plenitude, desse modo solicitando um desenvolvimento igualmente auspicioso para a verdadeira colheita.

Quioto orgulha-se daquele que se diz ser o mais antigo festival do país: o Aoi Matsuri, celebrado a meio de Maio. Durante uma época de grandes cheias no séc. VI d.C., os cidadãos imploraram à deusa da água Tamayorihimeno Mikoto e ao seu filho, o deus do trovão Kamo Wakeikazuchino Kami que parassem com a sua acção devastadora. Desde então, na Primavera, tem lugar uma procissão onde mãe e filho divinos são conduzidos simbolicamente desde o Palácio Imperial de Quioto até, respectivamente, ao santuário de Shimogamo e de Kamigamo. Ora-se por uma colheita abundante. Por todo o lado se coloca aoi (gengibre selvagem), um lendário detentor de tempestades.

Durante o Verão japonês, chuvoso e intensamente quente, pede-se aos deuses que protejam não só as sementeiras mas também a saúde dos habitantes. Em Chichibu, no Kawase Matsuri, o espírito da divindade, de ordinário guardada num relicário no Santuário Chichibu, é transferido para um mikoshi (andor, santuário portátil). Após transportá-lo numa parada até ao rio, os carregadores, com grande regozijo, banham-no na água para uma purificação ritual. A divindade retribuirá o favor, quando o dourado Outono trouxer consigo uma abundância de grãos de arroz.

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Os elaborados andores (mikoshi) são um dos pontos altos das paradas. A despeito do seu peso, muitas vezes tremendo, é uma honra e um privilégio carregá-los pelas ruas sob o incessante bater dos tambores. Partilhar esse peso tem um efeito catártico, provocando uma renovação espiritual tanto nos carregadores como nos espectadores entusiasmados. Nenhuma despesa é demais para venerar os deuses e são usados apenas os melhores materiais na confecção dos mikoshi e das indumentárias cerimoniais, em geral de seda pura.

Um matsuri orientado para a família e celebrado em todo o país no Verão, desde o séc. VII d. C., é o Festival dos Mortos, O-Bon, herdado do calendário budista chinês. Os espíritos dos antepassados são convidados a regressar aos lares numa visita de três dias. Para isso, alumiam-se os caminhos com lanternas ou fogueiras. As famílias reúnem-se para honrar os antepassados. Há danças folclóricas denominadas bon-odori em todas as cidades, vilas e aldeias e a população enverga alegres yukata (quimonos leves de Verão).

O festival Gion de Quioto, berço da cultura nipónica, é talvez o mais célebre de todos. Teve origem numa súplica dirigida pelo Imperador Seiwa ao kami do Santuário Yasaka, no sentido de fazer parar a devastadora peste do Verão de 869 d.C.. Quando a prece foi ouvida, a cidade organizou um enorme festival de agradecimento ao kami, no qual se destacava um pavilhão com rodas puxado à mão e em cujo topo podiam ser vistas alabardas medievais. Em 970, instituiu-se o festival como um acontecimento anual. Através dos séculos, o Gion Matsuri foi ganhando maior esplendor, com mais pavilhões embelezados de maneira cada vez mais imaginativa e rica. A sua construção é hoje de um refinamento sem par, exibindo verdadeiros tesouros e antiguidades, figuras históricas mecanizadas, cenas elaboradas e bandas de músicos tocando flauta, tambor e shamisen. Acompanham-nos centenas de homens, mulheres e crianças em trajes gloriosos. Bem alto no carro alegórico que lidera a parada, vai o chigo, a Criança Celestial, um rapazinho púbere cuidadosamente seleccionado e santificado ritualmente de modo a ser aceite pela divindade. Ele próprio encarna o kami durante o festival e executa o rito de cortar a corda sagrada que inaugura a procissão, assegurando assim a bênção da divindade sobre a cidade durante o ano seguinte.

No Outono abundam os matsuri ligados a Inari, a divindade dos grãos. Para o Xintoísmo, de matriz profundamente animista, certos animais são mensageiros dos deuses. Nos ubíquos santuários Inari, esse animal é a raposa branca. Comprovando a observância do sincretismo tão típica dos japoneses, celebra-se no templo budista Hojoji, na prefeitura de Yamaguchi, o festival de Outono Kitsune no Yomeiri (Procissão do Casamento das Raposas). Duas personagens envergando luxuosas indumentárias e usando máscaras de raposa – a noiva e o noivo – são casados ritualmente, de modo a celebrar um antigo milagre, quando um casal de velhas raposas morreu e atingiu o estado de Buda. Em honra da sua fidelidade e vida longa, jovens mulheres tomam parte na procissão, na esperança de que, desse modo, o seu próprio casamento venha a ser longo e alicerçado na fidelidade. O festival termina com os comuns procedimentos dos rituais xintoístas ligados às colheitas: os participantes rezam por elas e colocam oferendas de arroz novo no altar.

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No Inverno, as comunidades agrícolas de todo o Japão iniciam a prática de ritos primevos para invocar o favor dos deuses em relação ao labor que se avizinha. Em cada mês de Fevereiro, na prefeitura de Aomori, por exemplo, os camponeses de Hachinoche reúnem-se para a dança da fertilidade, pisando a terra coberta de neve, de modo a revificá-la: é o Emburi Matsuri. Os esplêndidos penteados usados pelos dançarinos trazem a imagem pintada de Inari e de Ebisu, o deus da prosperidade.

Nas comunidades piscatórias, através dos matsuri, implora-se às divindades pescas abundantes. Em Ohara, durante o Hadaka Matsuri (o chamado Festival Nu), os pescadores da área, envergando apenas um fundoshi (tanga) carregam dezoito mikoshi com divindades até às ondas do oceano.

O maior festival é o do Ano Novo. Como, hoje em dia, os japoneses seguem o calendário ocidental, tem lugar de 1 a 3 de Janeiro. Os preparativos começam no final do ano velho. Por volta de 29 de Dezembro, os escritórios do Governo, as empresas privados e as indústrias fecham portas. Segue-se um êxodo gigantesco de pessoas em direcção às suas vilas, aldeias e cidades natais, tornando muito difícil arranjar lugar em qualquer meio de transporte. Entretanto, as habitações foram cuidadosamente limpas. À entrada, colocaram-se ramos de pinheiro e penduraram-se cordas sagradas. As refeições tradicionais de Ano Novo foram preparadas. Na véspera do Ano Novo, as famílias comem um tipo de massa de fios compridos e finos, um desejo simbólico de uma longa vida. À meia-noite, os templos de todo o país fazem soar os sinos 108 vezes, de modo a expiar os 108 desejos perniciosos de que nos devemos livrar para conseguir uma vida plena, de acordo com o Budismo. No dia seguinte, muita gente vai aos templos e santuários rezar por saúde e prosperidade.

As crianças recebem presentes em dinheiro (otoshi-dama), dentro de envelopes tradicionais. Em casa, as famílias regalam-se com a comida tradicional (ozoni) e divertem-se com os jogos de Ano Novo. Um deles é o jogo karuta (do português “carta”), introduzido pelos lusitanos no séc. XVI. As cartas, entretanto, niponizaram-se completamente, sendo 50 delas decoradas com poemas ou provérbios e outras 50 com figuras que os ilustram. O objectivo é conseguir o maior número de pares de cartas cujos dizeres e ilustração condigam. Num outro jogo de cartas, Hyaku-nin-isshu, 50 cartas exibem um poema completo (obra de poetas famosos do séc. VII ao séc. XII) e uma figura do seu autor. Outras 50 exibem apenas o último verso dos mesmos poemas. O objectivo é conseguir achar rapidamente a carta com o último verso do poema que um outro participante começou a ler do princípio. Também faz parte da tradição o lançamento de papagaios de papel.

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O túmulo do xógum da era Edo, Tokugawa Ieyasu, unificador do Japão, encontra-se no famoso e resplandecente Santuário Toshogu, em Nikko. Aí foi Ieyasu deificado e venerado como um kami, como acontece amiúde no país com as personalidades de excepção. Em Maio e Outubro recria-se o cortejo que, em 1617 d.C., levou os seus restos mortais para Nikko. Colocam-se oferendas no altar, executam-se danças xintoístas e tem lugar uma exibição de tiro ao arco a cavalo no estilo antigo (yabusame), tudo para agradar às divindades. A parada começa com dignitários a cavalo liderando companhias de samurai e de guardas vestidos a rigor com armaduras e armas. Seguem-se homens carregando falcões ou empunhando estandartes, outros mascarados de leões, de macacos ou de personagens mitológicas, padres xintoístas, miko, pajens e músicos tradicionais. Empilhados nos passeios das avenidas, os espectadores revivem então a história ilustre do seu país.

As etapas da vida humana não são esquecidas. Os festivais dedicados às crianças são especialmente famosos. A 15 de Novembro festeja-se o bem-amado festival da infância Shichi-Go-San (Sete-Cinco-Três). Nesse dia, meninos de cinco anos e meninas de sete e de três, trajando quimonos luxuosos, são levados aos santuários xintoístas para serem abençoados pela sua divindade protectora. O Hina-Matsuri (Festival das Bonecas), a 3 de Março, é dedicado à felicidade das meninas pequenas. Nas habitações, exibem-se bonecas representando figuras da corte imperial. A 5 de Maio é o Koi-Matsuri (Festival das Carpas), em honra dos meninos. Figuras de samurai são colocadas na sala e carpas feitas de tecido são postas a voar ao vento, atadas a postes ou cordas. Exprime-se assim o desejo de que os meninos se tornem tão vigorosos quanto as carpas, capazes de nadar teimosamente contra a corrente.

Celebram-se festivais em honra do florescimento das sakura (flores de cerejeira), da lua cheia de Outono, do longo sono do vulcão do Monte Fuji… Particularmente interessantes para nós, portugueses, são os festivais que evocam a nossa chegada ao país dos Japões, como o Festival da Espingarda de Tanegashima (Teppo Matsuri) e a Parada Nanban em Sakai, Osaka.

Os matsuri são sempre festas que alegram os olhos e os corações. O nível de qualidade dos festivais japoneses não tem rival em todo o mundo.

Escrito por: Cláudia Ribeiro

One comment
  1. Inês M.

    Mais um óptimo artigo! 😉 A última fotografia parece-me ser do festival Teppo Matsuri de Nishinoomote (ilha Tanegashima), isto por causa das roupas que eles estão a usar… É realmente um bom exemplo de um dos muitos festivais da arma de fogo que se fazem no Japão. Apesar de não ser o mais antigo é especial por ser no local exacto dos eventos do século XVI. Parabéns à Cláudia pela compilação de informação!

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